Revista VEJA – edição 2186-13/10/2010
Entrevista Russell Mittermeier
Rumo à potência verde
O primatólogo aposta que o Brasil será o primeiro país do mundo a virar colosso econômico sem destruir a natureza e diz que a votação de Marina Silva é sinal disso
Russell Mittermeier estava embrenhado nas matas de Madagáscar gravando um programa de televisão sobre primatas para a BBC inglesa quando recebeu a notícia de que a candidata a presidente do Brasil pelo Partido Verde recebera quase 20% dos votos. "Os brasileiros estão mandando um recado para o mundo", festejou o primatólogo. Para ele, a votação expressiva de Marina Silva pode ajudar a transformar a agenda ecológica em tema nacional. Mittermeier, 60 anos, comanda a Conservation International, uma das mais competentes organizações ambientais do mundo, e sempre que pode abandona o escritório para se meter nas florestas do Brasil, Suriname e Madagáscar. Ele já identificou doze espécies (três tartarugas, três lêmures e seis macacos amazônicos). Fala seis idiomas, incluindo o sranan, língua crioula do Suriname, e o português.
Qual e a importância de uma candidata com consciência ecológica chegar perto dos 20% numa eleição presidencial?
É uma coisa fantástica. Os brasileiros estão mandando um recado para o mundo, dizendo que reconhecem o meio ambiente como base para o desenvolvimento sustentado. E sensacional, sobretudo porque não estamos falando de uma nação qualquer. Além de ser uma potencia emergente, o Brasil é dono da maior biodiversidade do planeta.
O senhor acredita nisso mesmo sabendo que em boa parte os votos dados a Marina Silva não foram votos ecológicos?
É ainda melhor. Marina é mais do que uma candidata verde. Ela tem uma capacidade rara entre políticos, que é a habilidade de falar para diversos públicos. Ela fala para os pobres, para os povos da floresta, para os ricos. Sua base eleitoral, portanto, é mais ampla. Por isso, confesso que não fiquei surpreso com seu desempenho eleitoral.
Com sua crescente influencia política, ela pode fazer com que a agenda verde deixe de ser uma preocupação dos ecologistas e passe a ser um tema nacional, uma preocupação universal. Isso faz toda a diferença. Quando era senador, Al Gore fazia um excelente trabalho em defesa do meio ambiente. Ainda em 1988, ele me deu uma aula sobre mudanças climáticas no computador do seu gabinete no Senado. Fiquei impressionado. Mas, quando se tomou vice-presidente de Bill Clinton, Gore calou-se. Por quê? A agenda verde era um nicho, representava um segmento estreito, e Clinton provavelmente não queria ser carimbado como verde. Era quase como ser carimbado como sectário. Quando Marina foi ministra do Meio Ambiente, enfrentou uma situação similar. Ela fez o que pode no contexto em que atuou e saiu quando viu que não podia fazer mais. Quando a agenda ecológica sai do nicho e passa a ser uma agenda nacional, é aí que a coisa avança. Marina está liderando tal avanço no Brasil, e esse e um recado fundamental para o mundo.
Agora, petistas e tucanos estão disputando o apoio de Marina para o segundo turno. Em termos de agenda ambiental, o que ela deveria exigir em troca?
De imediato, que não haja mudança no Código Florestal Brasileiro. É um código muito bom, mas há um projeto de lei circulando no Congresso para modificá-lo, reduzindo seu alcance. Se isso acontecer, será um retrocesso, e novas áreas de floresta serão destruídas.
O Brasil é um devorador de florestas?
O Brasil sofre críticas procedentes, porque tem problemas ambientais, mas é preciso reconhecer seus méritos. Nenhum outro país criou tantas áreas de proteção ambiental. Nem os Estados Unidos. Ate o início da década de 70, o Brasil não tinha nada nesse terreno. Lembro que no departamento de parques do antigo Instinto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal contava com apenas duas pessoas. Alceo Magnanini e Maria Tereza Jorge Pádua, que até hoje fazem um excelente trabalho. Em 1973, foi criada a Secretaria Especial do Meio Ambiente, cujo titular era Paulo Nogueira-Neto, um sujeito fantástico que começou a criar estações ecológicas. Daí em diante, o negócio deslanchou. Hoje, o Brasil tem áreas de proteção ambiental nas esferas federal, estadual e até municipal. É impressionante. Além disso, existem as áreas privadas e as áreas indígenas, que protegem grandes extensões de floresta. Os 6000 caiapós, por exemplo, ocupam uma área protegida de 11 milhões de hectares. Somando-se tudo, mais de 50% da Amazônia já está sob proteção legal. É a expressão de um compromisso ambiental notável, que precisa ser intencionalmente reconhecido.
O senhor conhece algum país que tenha se tornado potência econômica e preservado seu meio ambiente?
O Brasil tem tudo para ser o primeiro exemplo da história. Alguns países têm um excelente trabalho ambiental, como Belize e Costa Rica, cuja cobertura florestal está aumentando, mas nenhum dos dois é uma potência econômica. O Brasil tem tudo para ser o líder mundial. Primeiro, porque a biodiversidade brasileira é estupenda. Só rivaliza com a da Indonésia. Segundo, porque a ideia de que a destruição ambiental e condição para o desenvolvimento é uma estupidez do século passado. Não faz nenhum sentido hoje. Terceiro, porque não existe outro país com um grupo de conservacionistas tão dedicados e capazes como o Brasil. Os brasileiros são chamados para manejar os programas dos Estados Unidos. Com isso tudo, o Brasil só não se tornará a potência verde se não quiser. Basta reconhecer o que tem e trabalhar em favor disso.
E o Brasil é um devorador de primatas?
O país também tem a maior diversidade de primatas do planeta. Estima-se que existam cerca de 670 espécies de macaco no mundo, e só no Brasil há cerca de 135. Em segundo lugar está Madagáscar, com 101. Em terceiro, aparece a Indonésia. O Brasil ainda é o que cuida melhor dos primatas. O pior lugar para um primata viver hoje e o oeste da África, em países como Libéria, Guiné Equatorial, Camarões. Come-se muito macaco nesses países. E uma iguaria.
O senhor já comeu macaco?
Hein?
O senhor já comeu macaco?
Se eu responder, posso dar margem a mal-entendido.
Então o senhor já comeu. Foi como iguaria?
Não, não. Se fosse, eu estaria frito com os ambientalistas. Foi há muitos anos, quando estávamos famintos durante uma expedição pelas matas do Suriname.
Na prática, que diferença faz para o ser humano se os gorilas da África equatorial estiverem extintos daqui a dez ou vinte anos?
Se uma espécie de tigre some do planeta, o índice Dow Jones, da Bolsa de Nova York, não cai nem sobe, mas certamente teremos um mundo mais pobre, culturalmente mais pobre. Existe um fascínio pelos dinossauros, que desapareceram há 65 milhões de anos. Por que vamos deixar desaparecer outros bichos absolutamente espetaculares que existem na Terra? Nosso planeta é o único lugar do universo em que sabemos, com certeza, que há vida. Então, a vida na Terra é uma preciosidade. Mas, além do valor cultural, essas espécies vivem dentro de ecossistemas que nos prestam serviços essenciais. Se as florestas ao redor de São Paulo sumissem, de onde viria a água que abastece a cidade? A região de Catskill, no norte do estado de Nova York, é responsável pelo abastecimento de água da cidade de Nova York. Sem abelhas, quem vai polinizar as p1antações? Sem morcegos, quem controla os insetos? Além do valor cultural e dos serviços que os ecossistemas nos prestam, a biodiversidade é a matéria prima da biotecnologia. Sem biodiversidade, não existiria biomimetismo.
O que é biomimetismo?
É a ciência que tenta aplicar as soluções da natureza para resolver problemas na engenharia, na navegação, na medicina. As tartarugas são um excelente exemplo. Elas põem seus ovos na praia. Depois de dois ou três meses, os filhotes rompem a casca e saem em disparada para chegar ao mar, enfrentando vários predadores, como aves, caranguejos, lagartixas. De cada 100 filhotes, um chega ao mar. Essa tartaruguinha vai crescer nadando pelos oceanos, girando o planeta. Esses répteis têm etiquetas monitoradas por satélites, que mostram que percorrem distâncias incríveis. No entanto, depois de trinta ou quarenta anos, quando chega a hora de fazer sua desova, a tartaruga volta a mesmíssima praia onde nasceu. Como? Qual é o mecanismo que lhe permite encontrar precisamente a mesma praia? A Marinha americana estuda o fenômeno há cinqüenta anos. Especula-se que ela se guie pelas estrelas, pelo cheiro, mas não há resposta definitiva. Quando e se houver uma conclusão, poderá ser de extrema utilidade para a navegação. Os cupins podem ajudar os arquitetos no controle de temperatura das construções. Nas savanas da África e no cerrado, onde é terrivelmente quente, os imensos capinzais estão sempre fresquinhos, com temperatura amena, como se fossem dotados de ar-condicionado. Como isso é feito? Na América do Sul, sobretudo na costa da Colômbia, há um sapo pequeno, amarelo, extremamente venenoso. Mata em cinco minutos, porque tem um veneno 200 vezes mais forte do que a morfina. Os cientistas querem saber como é fabricado esse veneno. Levados para o laboratório, em três meses os sapos não tem mais veneno. Por que? O que eles captam no seu habitat, o que retiram dos insetos, o que comem, o que é, enfim, que os dota de um veneno tão poderoso? Esses sapinhos são pérolas, são como pequenos xamãs com seus segredos químicos.
A biodiversidade da Terra é suficientemente conhecida?
Até hoje, a ciência descreveu 1,9 milhão de espécies, entre animais, plantas e micro-organismos. Mas as estimativas mais conservadoras informam que a diversidade total pode chegar a 5 milhões de espécies. As mais otimistas falam em até 30 milhões. Seja como for, nosso desconhecimento sobre as formas de vida do planeta ainda é enorme. Em 1994, fizemos uma expedição para catalogar lêmures de Madagáscar. Adoro lêmures. Encontramos cinqüenta espécies. Em 2006, realizamos uma nova expedição. Catalogamos 71 espécies. Agora, numa terceira expedição, achamos 101. O dobro numa década e meia. Na Amazônia, estamos sempre encontrando novas espécies de sagui. É um ritmo de descobertas tão intenso que só se compara ao que ocorreu nas grandes expedições do século XIX, lideradas por Alfred Wallace, Henry Bates, Alexander von Humboldt e Richard Spruce.
Então por que se fala tanto em destruição?
Há dois processos simultâneos. Um, positivo, e o conjunto de descobertas feitas em áreas que, no passado, não eram acessíveis. O outro, negativo, e a destruição sem paralelos da natureza. Nos últimos 500 anos, um período curto em termos geológicos, o ritmo de desaparecimento de espécies aumentou mais de 1000 vezes. É uma estimativa muito grosseira, mas perdemos coisas espetaculares em ilhas do Havaí, na Austrália, na Nova Zelândia. Em Madagáscar, que conheço bem, havia um lêmure do tamanho de um gorila. Não existe mais. Havia outro que parecia um coala australiano, pesava uns 50 quilos. Sumiu. Cerca de 400 anos atrás, existia uma ave-elefante que pesava umas 1000 toneladas e chegava a 3 metros, uma coisa sensacional. A ave-elefante era enorme, fazia um avestruz parecer uma galinha. Um negócio magnífico. Não existe mais.
O senhor já descobriu seis espécies de macaco na Amazônia. Qual é a sensação de ver um bicho desses pela primeira vez?
O coração dispara. Identifico uma nova espécie assim que bato o olho. Afinal, conheço esses bichos quase mais do que meus próprios filhos! A coisa mais interessante da vida é ir para um lugar desconhecido e encontrar um bicho que nunca foi identificado pela ciência antes. E indescritível.
O senhor já visitou 141 países. Qual é o a lugar mais bonito do planeta?
Adoro o sul da Venezuela, é uma região absolutamente fantástica, com mata virgem, cascatas gigantescas e os tepuis, aquelas montanhas cujo topo é achatado, dando-lhes a aparência de uma mesa. Foi nessa região que Arthur Conan Doyle se inspirou para escrever O Mundo Perdido. E um pedaço lindíssimo do planeta.
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